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quarta-feira, 1 de agosto de 2007

José Saramago : Urbanidades

Urbanidades


O homem que conduz a camioneta chama-se Cipriano Algor, é oleiro de profissão. A camioneta não merece esse nome, é apenas uma furgoneta de tamanho médio, de um modelo fora de moda e vai carregada de louça. Quando saiu de casa, vinte quilômetros atrás, o céu mal começava a clarear. Vem viajando a velocidade reduzida por causa da fragilidade da carga e também por causa da irregularidade do pavimento da estrada. Seu destino é o Centro Comercial.

A região é fosca, suja, não merece que a olhemos duas vezes. Alguém deu a estas enormes extensões de aparência nada campestre o nome técnico de Cintura Agrícola, e também, por analogia poética, o de Cintura Verde, mas a única paisagem que os olhos conseguem alcançar dos dois lados da estrada, cobrindo sem solução de continuidade perceptível muitos milhares de hectares, são grandes armações de tecto plano, rectangulares, feitas de plásticos de uma cor neutra que o tempo e as poeiras, aos poucos, foram desviando ao cinzento e ao pardo. Debaixo delas, fora dos olhares de quem passa, crescem plantas. Por caminhos secundários que vem dar à estrada, saem, aqui e além, camiões e tractores com atrelados carregados de vegetais, mas o grosso do transporte já se efectuou durante a noite, estes de agora, ou têm autorização expressa e excepcional para fazer a entrega mais tarde, ou deixaram-se dormir.

Deixaram a Cintura Agrícola para trás, a estrada agora mais suja, atravessa a Cintura Industrial, rompendo pelo meio de instalações fabris de todos os tamanhos, actividades e feitios, com depósitos esféricos e cilíndricos de combustível, estações elétricas, redes de canalizações, condutas de ar, pontes suspensas, tubos de todas a grossuras, uns vermelhos outros pretos, chaminés lançando para a atmosfera rolos de fumos tóxicos, gruas de longos braços, laboratórios químicos, refinarias de petróleo, cheiros fétidos, amargos ou adocicados, ruídos estridentes de brocas, zumbidos de serras mecânicas, pancadas brutais de martelos de pilão, de vez em quando uma zona de silêncio, ninguém sabe o que se estará produzindo ali.

Depois da Cintura Industrial principia a cidade, enfim, não a cidade propriamente dita, essa avista-se lá adiante, tocada como uma carícia pela primeira e rosada luz do sol, o que aqui se vê são aglomerações caóticas de barracas feitas de quantos materiais, na sua maioria precários, pudessem ajudar a defender das intempéries, sobretudo da chuva e do frio, os seus mal abrigados moradores. É, no dizer dos habitantes da cidade, um lugar assustador. De tempos a tempos, por estas paragens, e em nome do axioma clássico que prega que a necessidade também legisla, um camião carregado de alimentos é assaltado e esvaziado em menos tempo do que leva a contá-lo.

Entre as barracas e os primeiros prédios da cidade, como uma terra-de-ninguém separando duas facções enfrentadas, há um largo espaço despejado de construções, porém, olhando com um pouco mais de atenção, percebe-se no solo uma rede entrecruzada de rastos de tractores, certos alisamentos que sé podem ter sido causados por grandes pás mecânicas, essas implacáveis lâminas curvas que, sem dó nem piedade, levam tudo por diante, a casa antiga, a raiz nova, o muro que amparava, o lugar de uma sombra que nunca mais voltará a estar. No entanto, tal como sucede nas vidas, quando julgávamos que também nos tinham levado tudo por diante e depois reparámos que afinal nos ficara alguma coisa, igualmente aqui uns fragmentos dispersos, uns farrapos emporcalhados, uns restos de materiais de refugo, umas latas enferrujadas, umas tábuas apodrecidas, um plástico que o vento traz e leva, mostram-nos que este terreno havia estado ocupado antes pelos bairros dos excluídos. Não tardará muito que os edifícios da cidade avancem em linha de atiradores e venham assenhorear-se do terreno, deixando entre os mais adiantados deles e as primeiras barracas apenas uma faixa estreita, uma nova terra-de-ninguém, que assim ficará enquanto não chegar a altura de se passar à terceira fase.

A estrada principal passara a ser mais larga, com uma faixa reservada exclusivamente à circulação de veículos pesados. Logo chegou à periferia da cidade, haveria ainda que percorrer umas quantas ruas de traçado confuso, virar à esquerda, virar à direita, à direita, esquerda, direita, em frente, finalmente desembocariam numa praça a partir da qual acabavam as dificuldades, uma avenida em linha reta levava-os aos seus destinos. Ao fundo, um muro altíssimo, escuro, muito mais alto do que o mais alto dos prédios que ladeavam a avenida, cortava abruptamente o caminho. Na realidade não o cortava, supô-lo era o efeito de uma ilusão de óptica, havia ruas que, para um lado e para o outro, prosseguiam ao longo do muro, o qual, por sua vez, muro não era mas sim a parede de uma construção enorme, um edifício gigantesco, quadrangular, sem janelas na fachada lisa, igual em toda a sua extensão.

O oleiro olhou o relógio, ainda era cedo. Mas tenho a vantagem de ocupar um bom lugar na fila, posso até ser o primeiro, pensou. Cipriano Algor pôs a furgoneta em andamento. Distraíra-se a observar um conjunto de prédios em demolição para a ampliação do centro comercial e agora queria recuperar o tempo perdido. O oleiro deu rapidamente a volta ao quarteirão e meteu a direito pela rua que limitava a outra fachada do edifício. Como era de invariável costume, já havia gente à espera de que se abrissem as portas destinadas ao público. Passou para a faixa esquerda de circulação, para o desvio de acesso à rampa que descia ao pavimento subterrâneo, mostrou ao guarda o seu cartão de fornecedor e foi tomar lugar na fila de veículos atrás de uma camioneta carregada de caixas que, a julgar pelos rótulos das embalagens, continham peças de vidro.

Saiu da furgoneta para ver quantos outros fornecedores tinha à sua frente e assim calcular, com maior ou menor aproximação, o tempo que teria de esperar. Estava em número treze. Contou novamente, não havia dúvidas. Embora não fosse pessoa supersticiosa, não ignorava a má reputação deste numeral, em qualquer conversa sobre o acaso, a fatalidade e o destino sempre alguém toma a palavra para relatar casos vividos da influência negativa, e às vezes funesta, do treze. Tentou recordar se em alguma outra ocasião lhe calhara este lugar na fila, mas, de duas uma, ou nunca tal acontecera, ou simplesmente não se lembrava. Ralhou consigo mesmo, que era um despropósito, um disparate preocupar-se com algo que não tem existência na realidade, sim, era certo, nunca tinha pensado nisso antes, de facto os números não existem na realidade, às coisas é indiferente o número que lhes dermos, tanto faz dizermos delas que são o treze como o quarenta e quatro, o mínimo que se pode concluir é que não tomam conhecimento do lugar em que calhou ficarem. As pessoas não são coisas, as pessoas querem estar sempre nos primeiros lugares, pensou o oleiro, E não só querem estar neles, como querem que se diga e que os demais o notem, murmurou. Com excepção dos dois guardas que fiscalizavam, um em cada extremo, a entrada e a saída, o subterrâneo estava deserto. Era sempre assim, os condutores largavam o veículo na fila à medida que iam chegando e subiam para a rua, para o café. Estão muito enganados se julgam que vou ficar aqui, disse Cipriano Algor em voz alta. Fez recuar a furgoneta como se afinal de contas não tivesse nada para descarregar e saiu do alinhamento, Assim já não serei o décimo terceiro, pensou. Passados poucos momentos um camião desceu a rampa e foi parar no sítio que a furgoneta tinha deixado livre. O condutor desceu da cabina, olhou o relógio, Ainda tenho tempo, deve ter pensado. Quando desapareceu no alto da rampa, o oleiro manobrou rapidamente e foi colocar-se atrás do camião, Agora sou o catorze, disse, satisfeito com a sua astúcia. Recostou-se no assento, suspirou, por cima da sua cabeça ouvia o zumbido do tráfego na rua, em geral também subia como os outros para beber um café e comprar o jornal, mas hoje não lhe apetecia. Fechou os olhos como se recuasse para o interior de si mesmo e entrou logo no sono. Acordou em sobressalto com o bater das portas dos carros, sinal de que a descarga ia começar. Então, ainda não completamente regressado do sonho, pensou, Não mudei de número, sou o treze que está no lugar do catorze.

Assim era. Quase uma hora depois, chegou a sua vez. Desceu da furgoneta e aproximou-se do balcão de atendimento com os papéis do costume, a guia de entrega em triplicado, a factura respeitante às vendas efectivas do último fornecimento, a declaração de qualidade industrial que acompanhava cada partida e na qual a olaria assumia a responsabilidade de qualquer defeito de fabrico detectado na inspecção a que as louças seriam sujeitas, a confirmação de exclusividade, igualmente obrigatória em todos os fornecimentos, em que a olaria se comprometia, submetendo-se a sanções no caso de infracção, a não ter relações comerciais com outro estabelecimento para a colocação dos seus artigos. Como era habitual, um empregado aproximou-se para auxiliar a descarga, mas o subchefe da recepção chamou-o e ordenou, Descarrega metade do que aí vier, verifica pela guia. Cipriano Algor, surpreendido, alannado, perguntou, Metade, porquê, As vendas baixaram muito nas últimas semanas, provavelmente iremos ter de devolver-lhe por falta de escoamento o que está em armazém, Devolver o que têm em armazém, Sim, está no contrato, Bem sei que está no contrato, mas como também lá está que não me autorizam a ter outros clientes, diga-me a quem é que vou vender a outra metade, Isso não é comigo, eu só cumpro as ordens que recebi, Posso falar com o chefe do departamento, Não, não vale a pena, ele não o atenderia. Cipriano Algor tinha as mãos a tremer. olhava em redor, perplexo, a pedir ajuda, mas só leu desinteresse nas caras dos três condutores que haviam chegado depois dele. Apesar disso, tentou apelar à solidariedade de classe. Vejam esta situação, um homem traz aqui o produto do seu trabalho, cavou o barro, amassou-o, modelou a louça que lhe encomendaram, cozeu-a no forno, e agora dizem-lhe que só fica com metade do que fez e que lhe vão devolver o que está no armazém, quero saber se há justiça neste procedimento. Os condutores olharam uns para os outros, encolheram os ombros, não tinham a certeza do que seria melhor responder nem a quem conviria mais a resposta, um deles puxou mesmo de um cigarro para tornar claro que se desligava do assunto, logo lembrou-se de que não podia fumar ali, então virou as costas e foi acolher-se à cabina do camião, longe dos acontecimentos. O oleiro compreendeu que teria tudo a perder se continuasse a protestar, quis deitar água na fervura que ele próprio havia levantado, de todo o modo vender metade era melhor do que nada, as coisas acabarão com certeza por compor-se, pensou. Submisso, dirigiu-se ao subchefe da recepção, Pode dizer-me o que é que fez que as vendas tivessem baixado tanto, Acho que foi o aparecimento aí de umas louças de plástico a imitar o barro, imitam-no tão bem que parecem autênticas, com a vantagem de que pesam muito menos e são muito mais baratas, Não é razão para que se deixe de comprar as minhas, o barro sempre é o barro, é autêntico, é natural, Vá dizer isso aos clientes, não quero afligi-lo, mas creio que a partir de agora a sua louça só interessará a coleccionadores, e esses são cada vez menos. A contagem estava terminada, o subchefe escreveu na guia, Recebi metade, e disse, Não traga mais nada enquanto não tiver notícias nossas, Acha que poderei continuar a fabricar, perguntou o oleiro, A decisão será sua, eu não me responsabilizo, E a devolução, sempre me irão devolver o que cá têm, as palavras tremiam de desespero e com tal amargura que o outro quis ser conciliador, Veremos. O oleiro entrou na furgoneta, arrancou com brusquidão, algumas caixas, mal escoradas depois da meia descarga, deslizaram e foram bater violentamente contra a porta de trás, Que se parta tudo de uma vez, gritou irritado. A culpa deveria ter sido do treze, ao destino não o enganam artimanhas de pôr depois o que estava antes. A furgoneta subiu a rampa, saiu à luz do dia, não há mais nada a fazer senão voltar para casa, O oleiro sorriu com tristeza, Não foi o treze, tivesse eu sido o primeiro a chegar e a sentença seria igual, por agora metade, depois se verá, merda de vida.

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O oleiro parou a furgoneta, desceu os vidros de um lado e do outro, e esperou que o venha saquear a gente das barracas, Se não o quiseram aqueles, então que o levem estes, foi o último pensamento de Cipriano Algor. Passaram dez minutos sem que alguém se aproximasse para cometer o ansiado latrocínio, um quarto de hora se foi sem que ao menos um cão vadio tivesse subido à estrada para mijar numa roda e farejar o recheio da furgoneta. e já ia vencida meia hora quando finalmente se aproximou um homem sujo e mal-encarado que perguntou ao oleiro. Há algum problema, quer ajuda, dou-lhe um empurrãozinho, pode ser coisa da bateria. Não, muito obrigado, disse, mas logo a seguir, quando o prestimoso cireneu já se afastava, saltou da furgoneta, correu a abrir a porta traseira, ao mesmo tempo que ia chamando, O senhor, ó senhor, venha cá. O homem parou, Sempre quer que o ajude, perguntou, Não, não é isso, Então, quê, Venha aqui, faça-me esse favor. O homem veio e Cipriano Algor disse, Tome esta meia dúzia de pratos, leve-os à sua mulher, é um presente, e tome mais estes seis, que são de sopa, Mas eu não fiz nada, duvidou o homem, Tanto dá, é o mesmo que se tivesse feito, e se está precisado de uma bilha para a água, aqui a tem, Realmente, uma bilha fazia-me jeito lá em casa, Pois então leve-a, leve-a. O oleiro empilhou os pratos, primeiro os rasos, depois os covos, depois estes sobre aqueles, acomodou-os à curva do braço esquerdo do homem, e, como a bilha para a água já estava suspensa da mão direita dele, não teve o beneficiado muito de si com que agradecer, só a vulgar palavra obrigado.

Quando o homem que tinha pinta de salteador. mas que afinal no o era, ou que simplesmente não tinha querido sê-lo desta vez, se sumiu, meio perplexo, entre as barracas, Cipriano Algor pôs a furgoneta em movimento. Olhando-o agora, ninguém acreditaria que só lhe compraram metade da carga que tinha levado ao Centro. Mau foi ter- lhe voltado outra vez à lembrança, quando dois quilómetros adiante penetrou na Cintura Industrial, o bruto revés comercial sofrido. A ominosa visão das chaminés a vomitar rolos de fumo deu-lhe para se perguntar em que estupor de fábrica daquelas estariam a ser produzidos os estupores das mentiras de plástico, maliciosamente fingidas à imitação de barro, E impossível, murmurou, nem o som nem o peso se lhe podem igualar, e há ainda a relação entre a vista e o tacto que li já não sei onde, a vista que é capaz de ver pelos dedos que estão a tocar o barro, os dedos que, sem lhe tocarem, conseguem sentir o que os olhos estão a ver. E, como se isto não fosse já tormento bastante, também se interrogou Cipnano Algor. pensando no velho forno da olaria, quantos pratos, púcaros, canecas e jarros por minuto ejectariam as malditas máquinas, quantas coisas a fazer as vezes de bilhas e quartões. O resultado destas e outras perguntas que não ficaram registadas foi ensombrar-se outra vez o semblante do oleiro e, a partir daí, o resto do caminho foi todo ele um contínuo cogitar sobre o futuro difícil que esperava a famflia Algor se o Centro persistisse na nova avaliação de produtos de que a olaria fora talvez a primeira vítima. Honra seja feita, porém. a quem a leva amplamente merecida, em nenhum momento Cipriano Algor permitiu que o seu espírito fosse tomado pelo arrependimento de haver sido generoso com o homem que o deveria ter roubado, se fosse verdade tudo quanto se tem andado a dizer a respeito da gente das barracas. Na orla da Cintura Industrial havia umas quantas modestas manufacturas que não se percebia como tinham podido sobreviver à gula de espaço e à múltipla variedade de produção dos modernos gigantes fabris, mas o facto era que ali estavam, e olhá-las à passagem sempre tinha sido uma consolação para Cipriano Algor quando, em algumas horas mais inquietas da vida, lhe dava para futurar sobre os destinos da sua profissão. Não vão durar muito, pensou, desta vez referia-se às manufacturas, não ao futuro da actividade oleira, mas foi só porque não se deu ao trabalho de reflectir durante tempo suficiente, sucede isto muitas vezes, achamos que já se pode afirmar que não vale a pena esperar conclusões só porque resolvemos parar no meio do caminho que nos levaria a elas.

Cipriano Algor atravessou a Cintura Verde rapidamente, não olhou nem uma vez para os campos, o espectáculo monótono das extensões de plástico, baças de natureza e soturnas de sujidade, causava-lhe sempre um efeito depressivo, imagine-se o que seria hoje, no estado de ânimo em que vai, se se pusesse a contemplar este deserto. Depois da Cintura Verde o oleiro tomou por uma estrada secundária. havia uns restos esquálidos de bosque. uns campos mal amanhados, uma ribeira de águas escuras e fétidas, depois apareceram numa curva as ruínas de três casas já sem janelas nem portas, com os telhados meio caídos e os espaços interiores quase devorados pela vegetação que sempre irrompe dos escombros, como se ali tivesse estado, à espera da sua hora, desde a abertura dos cavoucos. A povoação começava uns cem metros além, era pouco mais que a estrada que lhe passava ao meio, umas quantas ruas que a ela vinham desembocar, uma praça irregular que fazia barriga para um lado só, aí um poço fechado, com a sua bomba de tirar água e a grande roda de ferro, à sombra de dois altos plátanos. Cipriano Algor acenou a uns homens que conversavam, mas, contra o que era costume quando regressava de levar as louças ao Centro, não parou, num momento destes não imaginava o que lhe poderia apetecer, mas não de certeza uma conversa, mesmo tratando-se de pessoas que conhecia. A olaria e a morada em que vivia com a filha e o genro ficavam no outro extremo da povoação, metidas para dentro do campo, apartadas dos últimos prédios. Ao entrar na aldeia, Cipriano Algor havia reduzido a velocidade da furgoneta, mas agora avançava ainda mais devagar. Virou a furgoneta à esquerda, para um caminho em subida pouco pronunciada que conduzia à casa, a meio dele deu três avisos sonoros a anunciar que chegava.

A morada e a olaria tinham sido construídas neste amplo terreiro, provavelmente uma antiga eira, ou um calcadoiro, no centro do qual o avô oleiro de Cipriano Algor, que também usara o mesmo nome, decidiu, num dia remoto de que não ficou registo nem memória, plantar a amoreira, O forno, um pouco apartado, já havia sido obra modernizadora do pai de Cipriano Algor, a quem também idêntico nome fora dado, e substitufra um outro forno, velhíssimo, para não dizer arcaico, que, olhado de fora, tinha a forma de dois troncos de cone sobrepostos, o de cima mais pequeno que o de baixo, e de cujas origens tão-pouco havia ficado lembrança. Sobre os vetustos alicerces dele tinha-se construído o forno actual, este que cozeu a carga de que o Centro só quis receber metade, e agora, já frio, espera que o carreguem de novo.



(Adaptado de “A Caverna”, José Saramago, Companhia das Letras, São Paulo, 2000)

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