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domingo, 29 de julho de 2007

Élisée Reclus : A complexidade da produção do espaço geográfico

A COMPLEXIDADE DA PRODUÇÃO DO ESPAÇO GEOGRÁFICO



Élisée Reclus






É indispensável, sem dúvida, estudar à parte e de forma detalhada a ação especial de cada elemento do meio, frio ou calor, montanha ou planície, estepe ou floresta, rio ou mar, sobre tal povo determinado; mas é pó puro esforço de abstração que se tenta apresentar em separado esse fato particular do meio e que se procura isola-lo de todos os demais a fim de estudar sua influencia essencial.

Mesmo onde essa influência se manifesta de forma absolutamente preponderante nos destinos materiais e morais de uma sociedade humana, ela não deixa de se mesclar a uma série de outros estímulos, concomitantes ou contrários em seus efeitos. Sendo o meio infinitamente complexo, em conseqüência o homem é solicitado por milhares de forças diversas, que se movem em todos os sentidos, unindo-se umas às outras, algumas diretamente, outras segundo ângulos mais ou menos oblíquos, ou opondo-se umas à ação das outras.

Assim, a vida do insular não é determinada unicamente pela imensidão das ondas que o cercam: é necessário considerar também o grau de latitude em que ele passa sua existência, o deslocamento anual do Sol que o ilumina, as oscilações da temperatura, a direção e o ritmo dos ventos, a ação menos conhecida mas não menos real das correntes magnéticas, com todos os seus fenômenos de declinação, inclinação e intensidade; convém também verificar, em volta do grupo social que se estuda, a estrutura das rochas, a consistência e a cor do solo, o aspecto e a variedade das plantas e dos animais, o conjunto das paisagens que o cercam, em suma, tudo aquilo que, na natureza exterior, pode agir sobre os sentidos. Cada um de nós é, na realidade, um resumo de tudo aquilo que viu, ouviu, viveu, de tudo aquilo que pôde assimilar pelas sensações.

E ainda assim esse meio primitivo, constituído pelas coisas circundantes, é apenas uma tênue parte do conjunto das influências às quais o homem está sujeito. As necessidades da existência determinam um modo de alimentação que varia segundo as regiões; da mesma forma, a nudez ou o vestuário, o acampamento ao ar livre ou os diversos tipos de habitações – grutas e tetos de folhas, cabanas e casas – agem e reagem sobre a maneira de sentir e de pensar, criando assim em grande parte, aquilo que se chama “civilização”, estado ininterruptamente modificado por novas aquisições, entremeadas de sobrevivências mais ou menos persistentes. Além disso, o gênero de vida, combinado com o meio, se complica com numerosas doenças, de contágios repentinos, que variam de acordo com regiões e latitudes e se propagam, ao infinito, no conjunto das forças que determinam a humanidade.

Ao meio-espaço, caracterizado por mil fenômenos exteriores, é preciso acrescentar o meio-tempo, com suas transformações contínuas, suas repercussões sem fim. Se a História começa primeiro por ser “toda geografia”, como disse Michelet, a geografia se torna gradualmente “história” pela reação contínua do homem sobre o homem. Cada novo indivíduo que se apresenta, com atitudes que surpreendem com uma inteligência inovadora, com pensamentos contrários à tradição, se torna um herói criativo ou um mártir: mas, feliz ou infeliz, ele age, e o mundo se transforma. A humanidade se forma e se reforma com suas alternâncias de progressos, de recuos e de estados mistos, das quais cada uma contribui diversamente para formar, modelar e remodelar a raça humana.

Como enumerar todos esses fatos cuja ação se sucede com as sociedades e as renova constantemente? As migrações, os cruzamentos de população, as vizinhanças dos povos, o vaivém do comércio, as revoluções políticas, as transformações da família, da propriedade, das religiões, da moral, o aumento ou diminuição do saber são forças que modificam o ambiente e influem, ao mesmo tempo, sobre a parte da humanidade mergulhada nesse novo meio. Mas nada se perde: as causas antigas, embora atenuadas, ainda agem de modo secundário, e o pesquisador pode encontra-las nas correntes ocultas do movimento contemporâneo, da mesma forma que a água, desaparecida do leito primitivo da superfície, volta a ser encontrada nas galerias das cavernas profundas. Por isso pôde-se dizer, sinceramente, que os “mortos governam os vivos”. “O morto apodera-se do vivo”. Segundo um provérbio cafre[1], que serve tanto aos brancos como aos negros, “o fato é filho de um outro fato, e não se deve nunca esquecer sua genealogia”.

Assim, o meio geral se decompõe em elementos inumeráveis: uns pertencem à natureza exterior, designada freqüentemente como o “meio” por excelência, o ambiente propriamente dito; outros são de ordem diferente, uma vez que decorrem da própria marcha das sociedades e se produziram sucessivamente, aumentando ao infinito – por multiplicação – a complexidade dos fenômenos ativos.

Esse segundo meio dinâmico, acrescentado ao meio estático primitivo, constitui um conjunto de influencias no qual é sempre difícil, muitas vezes impossível, reconhecer as forças preponderantes, tanto mais que a importância respectiva dessas forças, primeiras ou segundas, puramente geográficas ou já históricas, varia segundo os povos e os séculos. Aqui, são os frios intensos que causam o despovoamento duma região, a morte da raça, ou que, obrigando os homens a se esforçarem para se acomodarem a um meio bem rude, contribuem indiretamente para o progresso; acolá, o mar ou o rio é o agente principal da civilização; mais além, é o contato repentino com povos desconhecidos, de cultura diferente, a causa determinante do avanço.

O cruzamento de um povo já muito avançado na ciência e nas artes com elementos de outra procedência e de cultura inferior é, necessariamente, o ponto de partida de um novo impulso progressivo ou regressivo: viu-se isso no caso de Roma sob a influencia dos gregos e, de forma geral, em todas as tribos do mundo bárbaro que entraram em contato com civilizados.

De qualquer forma, as adaptações diversas dos povos, sempre complicadas com lutas e combates, não devem ser contudo consideradas resultado da guerra contra a natureza ou contra outros homens. Quase sempre ignorando totalmente o sentido da vida, falamos naturalmente do progresso como sendo o resultado da conquista violenta: sem dúvida, a força do músculo sempre acompanha a força da vontade, mas não pode substituí-la. Em linguagem comum empregam-se as palavras luta, vitória, triunfo, como se fosse possível utilizar uma outra vida e não da natureza para conseguir modificar as formas exteriores: é preciso saber acomodar-se a esses fenômenos, aliar-se intimamente a suas energias e associar-se a um número crescente de companheiros que a compreendam para fazer obra permanente.

Mas todas as forças variam de lugar para lugar e de época para época: portanto, foi em vão que os geógrafos tentaram classificar, numa ordem definitiva, a série dos elementos do meio que influem no desenvolvimento de um povo – os fenômenos múltiplos e entrecruzados da vida não se deixam classificar numa ordem metódica. A tarefa já é bem difícil, e só tem valor convencional e de apreciação pessoal quando se trata de um único indivíduo. Evidentemente, este deve procurar “conhecer a si próprio”, como lhe ensinaram e repetiram os filósofos; mas, para se conhecer, é necessário também conhecer as influencias exteriores que o modelaram, estudar a história de seus ascendentes, perscrutar em detalhe os meios anteriores de sua raça, descobrir-se no estado subconsciente, rememorar as palavras ou as ações decisivas que o fizeram escolher, como Hércules, entre os dois, ou melhor, entre os mil caminhos da vida. E quão maiores ainda são as dificuldades de estudo quando o pensamento abarca vastas comunidades, nações inteiras, que até mudaram de nome, de senhores, de fronteiras e de domínios no decorrer do tempo, e que se enganam radicalmente sobre a origem de seus antepassados.

Por isso os historiadores, até mesmo investigadores com Taine, tão notável por sua penetrante sagacidade, limitam-se comumente a descrever os meios e as épocas imediatamente próximas para interpretar os fatos e os caracteres, método parcialmente bom para dar idéias gerais e médias, mas bem perigoso quando se estudam talentos originais, isto é, precisamente aqueles cujo caráter, determinado por elementos distintos dos do meio banal, reage contra o seu ambiente. Tão difíceis são os problemas da História relativos à sucessão dos meios, que comumente são afastados sumariamente, sendo atribuídos a uma pretensa diferença essencial daquilo que se chama as “raças”. Apos ter procurado compreender as influencias imediatas que agem de modo evidente, facilmente atribuem-se todos os outros traços do caráter nacional à raça presumida. Mas o que é de fato a raça, com todas as suas características de estatura, de proporções, de traços, de capacidade craniana, senão o produto dos meios anteriores que multiplicam ao infinito, durante todo o período que decorreu desde o aparecimento dos troncos iniciais do gênero humano? Aquilo que se chama “hereditariedade dos caracteres adquiridos” nada mais é do que essa ação sucessiva dos ambientes. A raça, como o indivíduo, é determinada, mas para isso ela emprega o tempo necessário.

A história da humanidade, no seu conjunto e nas suas partes, só pode pois ser explicada pela adição dos meios aos “juros compostos” durante a sucessão dos séculos; mas, para bem compreender a evolução que foi realizada, é preciso avaliar também em que medida os próprios meios evoluíram, em virtude da transformação geral, e modificaram, em conseqüência, sua ação. Assim, tal montanha, da qual outrora deslizavam longas geleiras para as planícies e cujas formidáveis escarpas ninguém escalava, cessou de ser barreira para o movimento das nações, quando largas gargantas, mal obstruídas pela neve ou até mesmo completamente livres, abriram um caminho entre os picos, e quando vias subterrâneas as atravessaram, percorridas por viaturas ocupadas por ociosos e dorminhocos. Do mesmo modo, tal rio, que era poderoso obstáculo para tribos fracas, inaptas para a navegação, se tornou mais tarde a grande artéria de vida para os canoeiros de suas margens.

À beira do oceano, tal “Finisterra” como o promontório de Sagres se transformou em ponto de partida para a descoberta de continentes desconhecidos. A planície constitui, para o movimento da civilização, um mundo bem diferente quando está recoberta de árvores e ali crescem gramíneas naturais ou há colheitas, e quando as estradas nela se entrecruzam e existem habitações humanas.

O mesmo se pode dizer dos traços da natureza que, sem nada mudarem, não deixam de exercer ação bem diferente, por influência da história geral que modifica o valor relativo de todas as coisas. Assim a forma da Grécia permaneceu a mesma, salvo por alguns detalhes, devidos às erosões e acumulações. Mas esses mesmos contornos e relevos adquiriram um significado bem diferente quando o movimento da civilização se dirigia para a Grécia, vindo de Chipre, da Fenícia, do Egito, ou, mais tarde, quando o centro da gravidade da história de deslocou para Roma! Produziu-se então um contraste dos acontecimentos, comparável ao contraste da luz que se espalha na aurora sobre uma vertente de montanha e da sombra que a invade no crepúsculo. E a vizinhança de uma capital, de um porto, de uma mina ou de uma camada de hulha não fazem surgir a vida da natureza sombria, aparentemente inerte? O próprio desenvolvimento das nações implica essa transformação do meio: o tempo modifica continuamente o espaço.





ANDRADE, Manuel Correia de. Élisée Reclus. São Paulo: ed. Ática, 1985.

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